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Wednesday, May 11, 2011

Cartas do Anónimo

Estava quase todo pendurado no corrimão do varandim, como uma hera caída numa parede emprestada. Não tinha mais de seis anos. A empregada já havia saído de casa dos senhores onde trabalhava. Dentro do comboio, de regresso a casa, saturada dos guinchos dos três miúdos e das correrias incessantes atrás de uma bola de ténis roçada pelo uso continuado proibido, Aurora distingue, entre ramos, braços, empurrões e cheiro a suor, o filho mais velho pendurado do lado de fora da varanda da frente. Estática, surda por momentos, sem uma gota de sangue na ponta dos dedos e o estômago desesperado, às voltas de si mesmo, Aurora pede um lugar e senta-se imediatamente. Os restantes transportados pressentiram que a senhora não se estava a sentir bem. O comboio não pararia senão daí a trinta minutos. Estávamos no ano de 1975. À empregada viúva. já sem as filhas a viver com ela, restava-lhe o silêncio cúmplice da aberração inquietante que tivera que testemunhar. Resolveu não voltar atrás. Não tinha forças, muito menos coragem. Esperou pela noite e pediu ao ruidoso despertador que se despacha-se a acordá-la. Mas não foi necessário. A sua consciência não lhe largava os olhos. No dia seguinte chegou mais cedo. Os senhores desconfiaram. Não percebiam o motivo da sua matutina dedicação. Aurora procurava sinais. Afinal também eram os seus meninos. Quando vê o pequeno Miguel abrir a porta do quarto e ficar especado a olhar para a empregada que ainda não era suposto estar lá em casa, Aurora, encolerizada, avança para o miúdo prestes a arrumar-lhe uma palmada no pequeno rabo ao léu. Ao segundo passo, quebrada perante a inocência do olhar inconsciente do perpetror, baixa-se e dá um longo beijo na face ainda morna da criança. Diz-lhe em tom de segredo, com a voz tremida, mais para ela que para ele: "o pior já passou"...

Ultravox, The Voice
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